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sábado, março 31, 2007

Por enquanto

John Hummel - arquivo Google

Cláudia Éfe

Você é o desconhecido
eu me pretendo
pular páginas
mergulhar em vírgulas
fumo em continuidade

e outras reticências

afinar o limite
até provocar o bastante
para decompor-se
melodicamente
no quanto

quinta-feira, março 29, 2007

CIBERDEPENDENTE


Célia Demézio

No lugar dos óculos
Ponha o escuro.
No lugar do azul,
Acenda a luz.
No lugar da cama,
Ponha a mesa.
No lugar do inferno,
Ponha fogo.
No lugar dos olhos,
Ponha lentes.
No lugar do um,
Ponha coisas.
No lugar do nada,
Ponha espelhos.
No lugar do dez,
Apanhe no horário.
No lugar de segredos,
Ponha falas.
No lugar da música,
Ponha os dedos.
No lugar da festa,
Ponha estrelas.
No lugar da rua,
Ponha diz que não.
No lugar da dor,
Não há remédio.
No lugar das falhas,
Ponha medalhas.
No lugar da frente,
Ponha o medo.
Num lugar ilusionista,
Aperte o botão.
No lugar do dia,
Ponha neblina.
No lugar da vida,
Ponha boa noite querida.
No lugar afinal,
Ponha a cabeça sobre o cobertor.

quarta-feira, março 28, 2007

UM NOVO CICLO DE RIQUEZAS

Oscar Quiroga


Data estelar: Mercúrio e Urano em conjunção no signo de Peixes, Lua cresce em Leão.

Enquanto isso, aqui na nave Terra um novo ciclo de riquezas materiais e espirituais anda se decidindo em tempo curto, resultando disso uma sensação de urgência que informa as almas humanas de não ser propício continuar perdendo tempo em tolices, preocupações ou aspectos periféricos.

O assunto agora é participar ativamente da decisão, pois o ciclo de riquezas significará prosperidade ou miséria, dependendo do objetivo e do método assumido para conquistá-lo. Por isso, aqui vai a dica, o método da competição desenfreada tem produzido, ao longo da história, desgraça e miséria, e agora se coloca à disposição de nossa humanidade a idéia de usar outro método, o da colaboração mútua, só que ainda ninguém sabe como fazer para aproveitar esse caminho.

em 28 de março de 2007

sábado, março 24, 2007

RE-SEIOS

Célia Demézio

Em cima da mesa ponho.
Debaixo da mesa guardo.
Limpo o pó de todo brilho.
Escolho o feijão que vou plantar olhando a noite germinar.
Ligo o ventilador e saio voando.
Passo férias de duas horas em Paquetá.
Então me lembro que esqueci a chave.
Volto mexendo os dedinhos como fossem nadadeiras no ar.
É hora de trabalhar!
Um prato apoiado no livro.
Sedas vazias.
Palitos apagados.
Um nó no fio da televisão.
Reviro gavetas atrás de sutiãs.
Procuro inspiração.

MÚSICA

Eduardo Sterzi

a musa voluptuosa
pede passagem

e lhe damos –
prosa:

qualquer imagem
vale mais

que a floração sentimental de uma
rosa:

gás lacrimogêneo,
luto, melancolia,

estrofe,
catástrofe,catarse:

deposita-se, linear
(limpa e suja como um verso)
pela praia pedregosa da palavra
- esta espuma.

(Do livro “Prosa”, publicado em 2001. Porto Alegre, Instituto Estadual do Livro.)

quinta-feira, março 22, 2007

COMO É POR DENTRO...

Fernando Pessoa

Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.

(1934)

NÃO ENTENDO

Clarisse Lispector


Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender.
Entender é sempre limitado.
Mas não entender pode não ter fronteiras.
Sinto que sou muito mais completa quando não entendo.
Não entender, do modo como falo, é um dom.
Não entender, mas não como um simples de espírito.
O bom é ser inteligente e não entender.
É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida.
É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice.
Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco.
Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.

segunda-feira, março 19, 2007

Sobre um certo Mário Quintana

Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo. Bem! eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. Ah! mas o que querem são detalhes, cruezas, fofocas... Aí vai! Estou com 78 anos, mas sem idade. Idades só há duas: ou se está vivo ou morto. Neste último caso é idade demais, pois foi-nos prometida a Eternidade. Nasci no rigor do inverno, temperatura: 1grau; e ainda por cima prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois achava que não estava pronto. Até que um dia descobri que alguém tão completo como Winston Churchill nascera prematuro - o mesmo tendo acontecido a sir Isaac Newton! Excusez du peu... Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim. Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que acho que nunca escrevi algo à minha altura. Porque poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação. Um poeta satisfeito não satisfaz. Dizem que sou tímido. Nada disso! sou é caladão, introspectivo. Não sei porque sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os outros?
Exatamente por execrar a chatice, a longuidão, é que eu adoro a síntese. Outro elemento da poesia é a busca da forma (não da fôrma), a dosagem das palavras. Talvez concorra para esse meu cuidado o fato de ter sido prático de farmácia durante cinco anos. Note-se que é o mesmo caso de Carlos Drummond de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Érico Veríssimo - que bem sabem (ou souberam) o que é a luta amorosa com as palavras.

O texto acima foi escrito pelo poeta para a revista Isto É de 14/11/1984.
Mário Quintana faleceu no dia 05/05/94.

A CARTA

Mário Quintana

Hoje encontrei dentro de um livro uma velha carta amarelecida,
Rasguei-a sem procurar ao menos saber de quem seria...
Eu tenho um medo
Horrível
A essas marés montantes do passado,
Com suas quilhas afundadas, com
Meus sucessivos cadáveres amarrados aos mastros e gáveas...
Ai de mim,
Ai de ti, ó velho mar profundo,
Eu venho sempre à tona de todos os naufrágios!

(foto: arquivo Google, sem referência autor)

domingo, março 18, 2007

DIÁRIO DE BORDO

(ilustração: arquivo Google sem referência autor)


Oscar Quiroga


EM NOME DA EVOLUÇÃO

Data estelar: Mercúrio ingressa no signo de Peixes, e a Lua atinge sua fase nova nesse mesmo signo.


Enquanto isso, aqui na nave Terra, a partir de agora, e em nome da urgente contribuição que nossa humanidade deve prestar ao processo evolutivo do qual é parte integrante, cada dia há de tornar-se motivo para roubar um minuto daqueles que normalmente seriam displicentemente dedicados às preocupações. Esse minuto roubado diariamente há de ser consagrado ao esclarecimento, à elevação espiritual, pois de pouco em pouco nossa humanidade precisa contribuir ativamente para fechar a porta cósmica onde o Mal entra livremente, invadindo a sociedade humana com miséria.


Nossa humanidade é parte integrante e agente ativa desse mal, contribuindo com pensamentos nefastos, todos consagrados a deprimir-se e amargar-se. Esse panorama pode, e deve mudar, o quanto antes.


18 de março de 2007
http://www.astrologiareal.com.br/

SOBRE CAFÉS E CIGARROS


Fernando de Castro

Prometi não falar mais de cigarro. Pega mal. Parece apologia. Também já prometi tentar parar de fumar. Ainda nem tentei. É sabido que o cigarro é o pior de todos os vícios. Falar de cigarros talvez seja o segundo pior, hoje em dia. É difícil soprar a fumaça a seco, fuzilado por olhares saudáveis, sem poder contra-argumentar com qualquer coisa positiva. O cigarro fede às narinas evoluídas, e não adianta forjar considerações que ressaltem a noção de aroma. Não existe safra de tabaco. Ninguém pede um maço de Marlboro vermelho ano 63. A fumaça escurece pulmões alheios. Somos assassinos de nós mesmos e de uma legião de futuros triatletas. O estado de acuamento é quase justo e reforça a impressão de que não duraremos muito tempo. Todo cigarro tem sabor de último cigarro. Nosso destino é a extinção, assim como aconteceu com o Minister Extra Mild e a ética petista.

Comecei a fumar em 1996. Foi um ano e tanto para o Brasil. O frango virou herói nacional. FH nos chamou de caipiras. Morreram Renato, Russo, Mamonas Assassinas e PC Farias. Maluf elegeu Celso Pitta prefeito de São Paulo. Em Ipanema, a moda eram os apitos nas rodas em que se fumava maconha, para avisar que a polícia se aproximava. Não me lembro do meu primeiro cigarro, mas sei que não foi em Ipanema e que ainda não se fazia necessário usar um apito antes de acendê-lo. Não era caso de polícia.

O início dos anos 2000 pareceu uma época extremamente promissora para os novos tabagistas. Mal sabíamos que era o apagar das guimbas. Na Alemanha, fumava-se até em supermercado. Em Barcelona, em bares como o delicioso Oveja Negra, provocava-se: “Aceitam-se não-fumantes”, dizia a placa, numa versão bem mais politicamente incorreta do que a dos cafés portugueses da Ribeira, no Porto, onde as placas acusavam a proibição de se estudar no local. Foram nossos anos JK. Devíamos ter previsto que a dívida que nos esperava seria praticamente impossível de pagar.

Certa vez o Zuenir, com toda a sua elegância, ao me ver acendendo um cigarro, sugeriu que eu fazia besteira. O Zuenir sabe das coisas. Tentei ser espirituoso, que é a forma mais honrada de se falar asneiras e justificar fraquezas. Disse que apostava na medicina. No fundo, fazia um bem para a sociedade. A ciência precisava de tipos como eu. Só assim alcançaríamos a cura para as doenças potencializadas pelo consumo do cigarro. Não pretendia uma placa ou estátua quando esse dia chegasse. Nada de monumentos em homenagem ao fumante desconhecido. Tragava pelo bem da humanidade. Eu era assim, um abnegado. Zuenir riu. O Zuenir é um ex-fumante elegante.

O golpe definitivo contra nossa espécie foi essa lei que proíbe o consumo de cigarros em cafés, bares, restaurantes, farmácias ou qualquer outro estabelecimento que venda produtos de necessidade fundamental ao ser humano, como café, chope, bife à milanesa e desodorante. Foi o primeiro passo rumo a nossa anti-sociabilidade definitiva. Nosso prazer hoje está nos pequenos momentos. Aqueles em que nos vemos autorizados a desviar da lei, com a conivência indireta dos nossos inimigos – ou seja, os não-fumantes inveterados, a espécie que mais cresce no Brasil.

Meu único grande momento se deu há algumas semanas. Teve como palco um dos melhores cafés-restaurantes-livrarias da Zona Sul, cujo rigor da lei se faz enxergar nas diversas placas espalhadas por todas as suas dependências. Já recusava o endereço há algum tempo, pelo óbvio motivo de que não se podia mais fumar ali. Até que certa noite eu encontrei o Antônio Torres na porta. Chamou-me para um café, ao que fiz menção de recusar, mas o bom senso me avisou que um café com o Torres seria agradável até sem as necessárias doses de nicotina que o líquido exige.

Casa lotada, mesa central, o Torres não tardou dois minutos para acender um cigarro. Esperei pela reação dos outros clientes, convicto de que as primeiras queixas não demorariam. Mal sabia eu do prestígio do grande escritor. Sempre que alguém acusava o gesto de irritação, espiava a origem daquela fumaça e, permissivo com o vício do autor de Meu querido canibal, recolhia-se ao seu prato, numa das maiores manifestações de respeito que já vi um não-fumante praticar. Foi lindo. Fui de carona, no prestígio do Torres. Fumamos à beça, feito dois Cunhambebes entre tantos colonizadores. E, contrariando toda história recém-escrita, saímos de lá como vencedores.

(Artigo publicado no Jornal do Brasil, em 18 de julho de 2006
foto: www.diamang.com/diamang/Lunda/povo/ocupacoes/...)

sábado, março 17, 2007

SINAIS

letra e música: Cláudia Éfe

Baque solto na noite
Pulsamos na mesma cidade
De um lado, é claro
Do outro, é só futuro
Triste festa na aldeia
Meninos passeiam nus
Nossas caras lavadas a lua presenciou
Gemidos nos seus porões
para sempre
incêndio no meu país
Ferida aberta é a fome
saindo dos seus sinais
rumo à fronteira da nossa indiferença
Sonharão com dias melhores?
Futuro que nunca amanhece
eterno dia seguinte
sangrando a nossa arte
Poema concreto absurdo
Vanguarda em cima dos muros
para sempre

quarta-feira, março 14, 2007

LIVRE PARA FRACASSAR...

Hilda Hilst

O escritor e seus múltiplos vem vos dizer adeus.
Tentou na palavra o extremo-tudo
E esboçou-se santo, prostituto e corifeu.
A infância
Foi velada: obscura na teia da poesia e da loucura.
A juventude apenas uma lauda de lascívia, de frêmito
Tempo-Nada na página.
Depois, transgressor metalescente de percursos
Colou-se à compaixão, abismos e à sua própria sombra.
Poupem-no o desperdício de explicar o ato de brincar.
A dádiva de antes (a obra) excedeu-se no luxo.
O Caderno Rosa é apenas resíduo de um "Potlatch".
E hoje, repetindo Bataille:
"Sinto-me livre para fracassar".

terça-feira, março 13, 2007

DESEJOS

Naomi Conte

Um dia ela ainda
se solta
perde os brios
a pose
o medo
e nesse dia
há de me deixar à deriva

domingo, março 11, 2007

Não te rendas jamais

Eduardo Alves da Costa

Procura acrescentar um côvado à tua altura.
Que o mundo está à míngua de valores
e um homem de estatura justifica a existência
de um milhão de pigmeus a navegar na rota previsível
entre a impostura e a mesquinhez dos filisteus.
Ergue-te desse oceano que dócil se derrama sobre a areia
e busca as profundezas, o tumulto do sangue a irromper na veia
contra os diques do cinismo e os rochedos de torpezas
que as nações antepõem a seus rebeldes.
Não te rendas jamais, nunca te entregues,
foge das redes, expande teu destino.
E caso fiques tão só que nem mesmo um cão venha te lamber a mão,
atira-te contra as escarpas de tua angústia e explode em grito, em raiva, em pranto.
Porque desse teu gesto há de nascer o Espanto.

Sobre um certo poema no caminho...


O poeta Eduardo Alves da Costa garante que Maiakóvski nada tem a ver com o tema, assim noticia a Folha de São Paulo, edição de 20.9.2003, na íntegra:
"Um Maiakóvski no caminho"
Foi resolvida graças à novela das oito uma confusão de 30 anos. Escrito nos anos 60 pelo poeta fluminense Eduardo Alves da Costa, 67, o poema "No Caminho, com Maiakóvski" era (quase) sempre creditado ao russo Vladimir Maiakóvski (1893-1930).Em "Mulheres Apaixonadas", Helena (Christiane Torloni) leu um trecho do poema, dando o crédito correto. Foi o suficiente para reavivar a polêmica -resolvida dois capítulos depois, em que a autoria de Costa foi reafirmada- e, de quebra, fazer surgir uma proposta de reeditar o poema, para aproveitar a exposição no horário nobre.Livro combinado, a noite de autógrafos será na novela. "Pedi que apresse e me mande até o dia 10. Quero lançar aqui", diz Manoel Carlos, autor de "Mulheres". Eduardo Alves da Costa falou à coluna:Folha - Você se arrepende de ter posto Maiakóvski no título?Eduardo Alves da Costa - De maneira nenhuma! Tanto que vou usar o mesmo título para o livro que sai agora.Folha - Durante mais de 30 anos acreditaram que o poema era dele. Isso não o incomoda?Costa - Era uma enxurrada muito grande. Saiu em jornais com crédito para Maiakóvski. Fizeram até camisetas na época das Diretas-Já. Virou símbolo da luta contra o regime militar.Folha - Como surgiu o engano?Costa -O poema saiu em jornais universitários, nos anos 70. O psicanalista Roberto Freire incluiu em um livro dele e deu crédito ao russo e me colocou como tradutor. Mas já encomendei da França a obra completa do Maiakóvski. Quando alguém me questionar, entrego os cinco volumes e mando achar o poema lá.
"Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada.
Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada"
Trecho do poema de Eduardo Alves da Costa atribuído ao russo Vladimir Maiakóvski.
Leia agora o poema inteiro
NO CAMINHO COM MAIAKÓVSKI
Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti,
Maiakóvski.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,aprendi a ter coragem.
Tu sabes,conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na Segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,matam nosso cão,e não dizemos nada.
Até que um dia,o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz;
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.
Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne a aparecer no balcão.
Mas eu sei,porque não estou amedrontado
a ponto de cegar,
que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortinal
ançada sobre os arsenais.
Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,no plantio.
Mas ao tempo da colheitalá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos laresmas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.
E por temor eu me calo,
por temor aceito a condiçãode falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,o coração grita - MENTIRA!

sábado, março 10, 2007

insanidades

foto: arquivo Google, sem referência autor
Gabriela Azevedo & Cláudia Éfe



Vaõ-se as penas

ficam os poemas

sábado, março 03, 2007

REFERENDO EM PORTUGAL

DESPENALIZAÇÃO DO ABORTO EM PORTUGAL: A CONFIANÇA NA DECISÃO DAS MULHERES
(Texto enviado pelas Historiadoras
Alcilene Cavalcanti e Gabriela Azevedo)

A sociedade portuguesa, no último 11 de fevereiro, deu um basta ao obscurantismo e aos grupos fundamentalistas e conservadores que se opunham ao livre exercício da cidadania e aos direitos individuais, por conseguinte opunham-se à democracia. Mulheres e homens de Portugal votaram Sim pela despenalização da interrupção voluntária da gravidez, por opção da mulher, até a 10ª semana, em estabelecimento regulamentado pelo Estado. Aproximadamente 59% dos/as votantes expressaram a confiança na capacidade que as mulheres têm de tomar decisão com base na ética e na moral.
Católicas pelo Direito de Decidir colaborou com essa conquista para a Democracia, logo, para os Direitos Humanos das Mulheres, apresentando, juntamente com católicos/as mandatários/as de diferentes movimentos pelo Sim, em oito cidades portuguesas (Angra do Heroísmo, Ponta Delgada – Açores –, Serpa, Porto, Braga, Viseu, Coimbra e Lisboa), argumentos que servissem de subsídios para crentes e não crentes – para usar expressão muito pronunciada em Portugal – votarem a favor de as mulheres terem o direito de decisão e, com isto, de não serem penalizadas e humilhadas.
Quando uma mulher decide abortar – seja por qual motivo for – ela analisa suas próprias condições de vida e o que poderia ofertar para uma futura criança. Trata-se de um gesto de grande responsabilidade e de difícil decisão, no qual a mulher faz uso de sua consciência. Ao contrário, pressupor algo diferente disto, implicaria considerar as mulheres irresponsáveis, insanas e desvairadas. Infelizmente, essa visão sobre as mulheres ainda é presente em certos segmentos sociais que defendem a criminalização do aborto, ignorando os desdobramentos do aborto inseguro para a saúde da mulher e manifestando descaso para com a maternidade e a paternidade responsáveis – ao menos foi o que se ouviu em diferentes pronunciamentos daqueles que fizeram campanha pelo Não, em Portugal, e que encontram equivalência também no Brasil.
A propósito, foi espantoso acompanhar a manipulação de informações empreendida pelos mandatários que defendiam o voto Não: aquelas pessoas alegavam a defesa incondicional da vida – mas defendiam apenas o embrião –; criaram a maior confusão acerca da idade fetal, como se não houvesse diferença alguma entre as denominações embrião, feto, criança, filho; médicos/as pesquisadores/as apresentaram ultrassonografias de gravidezes de 20 semanas como se fossem imagens de 10 semanas; apresentaram ecografias e audios de batimentos cardíacos referentes a idade fetal de 18 semanas ou mais como sendo relativos a 10 semanas; os conteúdos de cartazes, panfletos e outdoors eram absolutamente apelativos, o que procurava inviabilizar diálogos com base na razão.
Além disso, tais grupos argumentavam que a alteração da lei geraria aumento da demanda de mulheres para abortar e isto acarretaria a implosão da rede de saúde, tornando necessário aumentar os impostos dos contribuintes para se arcar com os custos desse tipo de serviço. Ora, primeiro, ignoraram que toda política social, principalmente, que implica redução de danos, tem uma demanda maior em um primeiro momento; segundo, suscitaram que as mulheres são irresponsáveis; terceiro, desconsideraram o custo que o Estado já tem devido ao aborto clandestino: afinal, centenas de mulheres são internadas anualmente, em hospitais portugueses, por complicações de abortos inseguros.
Mas, apesar dessa tentativa de criar confusão, os portugueses e as portuguesas não se deixaram manipular: votaram Sim pela despenalização da interrupção voluntária da gravidez, por opção da mulher, até a 10ª semana – configurando uma diferença de quase 20% a mais dos votos em relação ao Não.
Há ainda três aspectos a sublinhar: o primeiro, refere-se ao fato de que a população de Portugal (11 milhões de habitantes) é menor do que a da capital de São Paulo, não sendo o voto obrigatório sequer nas eleições para parlamentares; em segundo lugar, a sociedade civil portuguesa envolveu-se diretamente no referendo, expondo-se publicamente por meio de agrupamentos específicos que envolviam médicos; parlamentares de diferentes partidos; religiosos; operadores do direito; professores; jovens; artistas; intelectuais; mídias, organizações sociais; enfim, homens e mulheres.
O último aspecto. O referendo foi a saída que o governo português encontrou para superar os entraves dos segmentos sociais que não se dispunham a compreender a relação entre direitos reprodutivos e democracia, bem como guardavam uma visão bastante estereotipada sobre as mulheres. Contudo, interromper ou não uma gravidez, além de ser algo de foro íntimo, o que deve ser resguardado, no máximo regulamentado em regimes democráticos, consiste em direitos reprodutivos que, como tais, não configuram matéria de referendo ou plebiscito. Acrescente-se, ainda, que a criminalização do aborto não reduz a prática, ao contrário, transforma a matéria em problema de saúde pública.
Desse modo, enfrentar honestamente a problemática do aborto – presente em diferentes sociedades – exige, em nosso caso, não um referendo ou um plebiscito, mas que nossos/as parlamentares descriminalizem o aborto e regulamentem sua prática e, assim, alinhe o Brasil aos demais países democráticos.