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quinta-feira, novembro 30, 2006

Leminskiana

Cairo Trindade



estar por cima?
estar por baixo?
conheço o processo

sucesso/fracasso


estar à beça
aberto ao abraço
estar inteiro no pedaço
é o que interessa


mesmo no bagaço
na lama na fossa
possa o fundo do poço
ser um primeiro passo

quarta-feira, novembro 29, 2006

Igual-desigual

Carlos Drummond de Andrade




Eu desconfiava:
todas as histórias em quadrinho são iguais.
Todos os filmes norte-americanos são iguais.
Todos os filmes de todos os países são iguais.
Todos os best-sellers são iguais.
Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são iguais.
Todos os partidos políticos são iguais.
Todas as mulheres que andam na moda são iguais.
Todas as experiências de sexo são iguais.
Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguais
e todos, todos os poemas em versos livres são enfadonhamente iguais.
Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores, iguais iguais iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa.
Não é igual a nada.
Todo ser humano é um estranho
ímpar.

domingo, novembro 19, 2006

Hilda Hilst




Eu sempre me fascinei com o matemático indiano Srinivasa Ramanujan. Ele dizia que para resolver seus intricados teoremas era movido apenas pela beleza das equações. Na poesia também é assim. É uma espécie de exercício do não-dizer, mas que nos dilata de beleza quando acabamos de ler um poema.

sábado, novembro 18, 2006

hoje acordei com a palavra amor entre os dentes

INCRÉDULO

Cláudia Ferrari


Eu acredito no vento, na chuva franca
Nos labirintos da terra que se abrem para a raiz
e tudo é livre e cumpriu seu itinerário torto de estar
Na fecundidade do riso
Esse sim, o que rega e está vivo

Eu acredito na cópula
Na língua quente do beijo
Na saliva que se troca por outra troca
E desliza pelo fluxo implacável dos sentidos

Eu acredito nessa manhã que me rasga
Nesse amor que me desorienta
E me escreve de destino
E me tece

Eu acredito no silêncio e no estrondo
Da tarde que virá e outra noite
Nas luas que se sucedem e multiplicam
No invisível dos tempos, sobre a contundência das horas

quinta-feira, novembro 16, 2006

Soneto


Luís de Camões

Quem diz que Amor é falso ou enganoso,
ligeiro, ingrato, vão, desconhecido,
Sem falta lhe terá bem merecido
Que lhe seja cruel ou rigoroso.

Amor é brando, é doce e é piedoso;
Quem o contrário diz não seja crido:
Seja por cego e apaixonado tido,
E aos homens e inda aos deuses odioso.

Se males faz Amor, em mi se vêem;
Em mim mostrando todo o seu rigor,
Ao mundo quis mostrar quanto podia.

Mas todas suas iras são de amor;
Todos estes seus males são um bem,
Que eu por todo outro bem não trocaria.
extraído do livro "Inês de Castro e O velho do restelo", de autoria de Sylmara Beletti e Frederico Barbosa, Landy Editora - São Paulo, 2001, pág. 39.

quarta-feira, novembro 15, 2006

Memória (fragmento)

Carlos Drummond de Andrade
Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
estas ficarão

Robertinho dos Anjos

Nosso querido ROBERTINHO DOS ANJOS, amigo, compositor e músico (entre outros tantos talentos), faleceu.

O enterro será no dia de hoje, 15 de novembro de 2006, às 14h, no cemitério do Catumbi.
Evoé, Robertinho!

sábado, novembro 11, 2006

dos poemas desnecessários

Cláudia Ferrari
A vida ladra e morde
ventania de areia para olhos míopes
um deserto que acontece quântico
A vida anda manca
tropeça nas próprias pernas
não faz um quatro, não faz sentido
é puro estardalhaço
A vida me põe de bandeja
me veste, me deixa nua
esfrega o meu ridículo
de tantos outros cúmulos
do alto da montanha ao precipício

O choque entre o passado e o futuro

Oscar Quiroga
Dizem que o tempo é um rio que nos empurra, em tempo presente, vindo do passado em direção ao futuro, porém, não é menos real afirmar que o tempo também é o mesmo rio, só que, no tempo presente, nos empurra vindo do futuro na direção do passado.Eis a diferença existencial entre viver de acordo com as memórias, ou as esperanças.Aqui e agora, constantemente temos de equacionar e equilibrar as duas em tempo presente contínuo, em gerúndio: estamos fazendo, estamos vivendo...Aqui e agora, esse choque é mais perceptível do que nunca, e grande parte das transformações que se operam no mundo não resulta das conquistas passadas, mas do que virá a acontecer.É esse futuro o que, mais do que nunca, faz crescer em nossos corações a demanda pela construção de relacionamentos corretos, relacionamentos de confiança.É o passado o que nos tenta a continuar gastando tempo e recursos mentais e emocionais para comprar coisas, e nos enterrar vivos sob elas.
Vinicius de Moraes



...intimamente ligados num só movimento, vivendo e pulsando juntos, isolando-se no ritmo e prolongando-se na continuidade, sem que nada possa contar em separado. Há um todo comum indivisível.

quinta-feira, novembro 02, 2006

ANTROPOFAGIA - TARSILA DO AMARAL

Não sei quantas almas tenho

Fernando Pessoa



Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que sogue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.
Mário Quintana
Que esta minha paz e este meu amado
silêncio
Não iludam a ninguém
Não é a paz de uma cidade
bombardeada e deserta
Nem tampouco a paz compulsória dos
cemitérios
Acho-me relativamente feliz
Porque nada de exterior me acontece...
Mas,
Em mim, na minha alma,
Pressinto que vou ter um terremoto!